sexta-feira, 25 de maio de 2012

A Passageira






          Como de rotina, me arrumei e fui para o ponto de ônibus. Esperei-o tranquilamente, estava no tempo. Cada música que ouvia passava depressa, cada uma com seu peso, algumas despercebidas. Até que, enfim, o ônibus chegou. Como o esperado, entrei, passei na catraca e m sentei no acento ao lado de uma senhora simpática.
          Observava as paisagens que passavam frenéticas pelas janelas, como um quadro vivo ou uma televisão enorme. Ao fundo, a trilha sonora de um indie rock qualquer.
          Pessoas passavam ao meu lado, despercebidas por mim. Sequer as olhava. Até que, em uma determinada parada, enquanto olhava para o céu violeta, percebi uma certa agitação tomou conta entre os passageiros. Virei-me para ver o que acontecera, até te ver dando o dinheiro para o abismado cobrador. Com delicadeza, você passou pela catraca e andou pelo ônibus, acompanhada de olhares, inclusive o meu. Veio andando e, para minha sorte, olhou para mim e sentou-se no acento à frente do meu.
          Fiquei observando seus cabelos lisos e loiros, perfeitamente cuidados. Lembrava insistentemente de seu olhar. O balburdio no ônibus havia cessado, mas dentro de mim ainda ocorria explosões. Me fixava tanto na memória de seu rosto, que ele acabou se desfazendo, aparecendo apenas como espasmos.
          Indignado e furioso com que estava acontecendo, sem pensar, busquei a janela e vi seu rosto no reflexo. Sua face retornou a minha mente, metralhado. Via apenas seu perfil, o que para mim já bastava. Dava para ver seu grande olho cor de mel, maravilhosamente enfeitado com maquiagem escura.
          Com aquela visão, adormeci de olhos abertos. Imaginei você levantando, tropeçando e caindo sobre mim. Sem graça e envergonhada, você pede desculpas. Eu, mais tímido ainda, aceito o pedido. Nós dois ficamos nos olhando, um para os olhos do outro, como se víssemos algo novo. Devagar, eu e você nos aproximamos e, pouco a pouco, nossos lábios também. Então, você me dá o seu telefone e desce do ônibus.
          Eu, no outro dia, ligo pra você. Dois dias depois nos encontramos num cinema qualquer, para ver um filme qualquer. Bobos, conversamos. No fim do dia, feliz, te pedia em namoro. Você, ruborizada, aceitava. Para finalizar aquele dia, um beijo.
          Anos depois, me vi em um altar, olhando você dar pequenos passos em minha direção. Você estava linda, de branco e com flores nas mãos que pareciam extensões de seus dedos. Rapidamente, estávamos na saída da igreja levando uma chuva de arroz.
          De repente, me vi chegando em uma bela casa, você estava me esperando na mesa para jantar. Eu abria o prato e, com um susto, via pequenos sapatinhos de bebê. Você olhava para mim, rindo e chorando ao mesmo tempo.
          Depois, mais rápido ainda, estava rodeado por três crianças, duas meninas e um menino com pouca diferença de idade. Senti que estava mais gordo, e te vi, um pouco mais velha, mas com a mesma beleza.
          Tempos mais tarde, estávamos juntos em uma varanda de uma casa de campo, com as mãos frágeis segurando fotos de nossos filhos crescidos. Acariciava seus cabelos lisos e grisalhos e você alisava meu braço flácido.
          Até que, despertado por um barulho, vi você levantando do acento e apertando o botão de parada solicitada. Seu corpo era perfeito. Quando passou por mim, fiquei esperando que caísse sobre mim, como no sonho. Mas você passou fria, sem sequer olhar pra mim. Respirei fundo e senti seu doce perfume.
          O ônibus foi parando lentamente, eu não olhava para trás. Depois de um tempo agonizando, olhei para a janela, te vi andando sobre a calçada e em poucos segundos virando a esquina e desaparecendo, para sempre. E o ônibus voltou a andar.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

O Último Conde - Parte II





Eis-me aqui novamente, no primeiro compromisso que cumpro e a minha primeira responsabilidade. Sem muitas delongas, irei contar a maravilhosa boa nova que recebi.
Hoje de manhã, enquanto nos servíamos do café, meu pai me dirigiu a palavra:
– Filho, tenho uma notícia para lhe dar.
– Diga meu pai. – disse-lhe.
– Mesmo que não mereça a regalia, vou suspender suas aulas com seu professor Octávio.
Um sentimento perfeito percorreu por entre minhas entranhas. Senti vontade de gritar histericamente, mas me contive e perguntei:
– Qual o motivo da decisão, papai?
– Após ouvir você dizer aquelas barbaridades, percebi que já é maturo o suficiente e que não precisará ser ensinado.
Minha mãe ouviu aquilo indignada, afinal, sou muito novo para que suspendesse minhas aulas.
– Como assim, Antônio? – disse ela. – Você toma uma decisão assim sem me consultar antes?
– É a minha decisão final. – rogou.
– Se é esse o seu desejo, cumprirei com muita satisfação. – proferi.
Passado um tempo, fui ao jardim e comemorei. Não o tanto que queria, pois se meu pai visse que estava contente, decerto voltaria atrás. Parece-me que ele gosta de me ver triste. Talvez seja porque o que é bom pra ele seja péssimo pra mim.
Quis contar a novidade para todos meus amigos, que se resumem a um, Tomas. Pois é, tenho apenas um amigo. Muitos dizem que isso é ruim, mas não concordo. Estou muito bem com somente um. O que considero ruim mesmo é o fato dele morar longe. Por isso que fui até mamãe e lhe disse:
– Posso ir à casa de Tomas?
– Pode sim. – pronunciou. – Vou mandar que Moisés lhe leve para lá. Mas, tome cuidado!
– Irei tomar.
Moisés é o capataz dos escravos que servem ao meu pai. Tenho um pouco de medo dele. Tem uma cicatriz enorme percorrendo a face.
Ele aprontou a carruagem e me levou para casa de meu amigo, que fica a trinta minutos da minha.
Ao chegar lá, encontrei Octávio, meu antigo professor. Não sei se estava sentido em me ver, pois nem me cumprimentou. Ignorei-o e me dirigi a porta. Antes de batê-la, Moisés me chamou e disse com sua voz grossa:
– Ás dezessete horas venho te buscar, como a senhora mandou.
– Tudo bem, pode ir agora.
Ele o fez. Voltei para a entrada e bati na porta. Uma preta me atendeu, já a conhecia e ela também a mim.
– Pois não, seu Joaquim?
– O Tomas está aí? – disse-lhe.
– Está sim, entre que eu irei chamá-lo.
Entrei na casa, que é razoavelmente menor que a minha. O pai de Tomas, senhor Luís Pena, é um dos agricultores mais ricos da região. A sujeita me levou à sala e foi avisar a Tomas que eu estava lá. Pouco tempo depois, ele apareceu, com seus cabelos desgrenhados.
– Joca! Que bom que você veio! – disse-me, dando um abraço.
– Precisei vir. – disse. – Tenho muitas coisas para lhe contar.
– Vamos para meu quarto. Você me conta lá.
Subimos as escadas e fomos para o quarto dele. Sentamos na sua cama.
– Então, o que você tem pra falar? – indagou.
– Você não vai acreditar! Meu pai suspendeu as aulas do professor Octávio!
– Uau! Que máximo! Que sorte...
– Pois é, sorte mesmo. Aquele professor é muito chato.
­– Nem diga. Acabei de ter aulas com ele.
– Eu sei. O vi saindo daqui. Nem falou comigo. Não faço questão nenhuma.
– Por que seu pai decidiu isso?
– Por causa do que aconteceu nesses dias.
– O que aconteceu?
Bateram na porta. Tomas se levantou e foi ver quem era. Era José, o filho que seu pai teve com aquela escrava. Mesmo com o pai branco, nasceu negro. Tem a mesma idade do irmão.
– O que quer? – perguntou Tomas, friamente.
– Vim trazer esses refrescos. – respondeu José, rebaixando-se.
Tomas pegou os refrescos e tentou fechar a porta, mas foi impedido pelo meio-irmão.
– Posso ficar aqui com vocês? – indagou.
– Claro que não! – disse Tom, fechando a porta na cara do coitado.
Ele me entregou a bebida, apanhou a dele e colocou a bandeja com copo que seria de José numa mesinha. Com um só gole, bebeu tudo, nervoso. Olhei para ele, abismado.
– Por que você o trata assim? – perguntei.
– Por que ele é um escravo e é negro. – respondeu. – Minha mãe disse para tratá-lo igual à Clarice – outra irmã dele, de verdade – mas não dá! Eu não aceito ele como um irmão!
Bebi o refresco, dei uma pausa e disse:
– Então, vou continuar a minha estória...
– Claro. Perdoe-me, continue.
Contei para ele o que aconteceu. Não tudo, pois há coisas que não eram provenientes. Contei que vi tio Dimas deitar-se com uma mulher, mas não a minha reação. Enfim, quase tudo.
– Caramba! – disse-me, quando terminei. – Olhe o que você disse para seu próprio tio!
– Não foi proposital... – respondi.
– Sei... Mas já que estamos falando nisso, vou contar o que vi um dia.
– O quê?
– Não faz muito tempo. Era tarde da noite, não estava conseguindo dormir. Fui até a janela pegar um ar fresco e vi algo bizarro. Dois escravos estavam se relacionando entre a mata. Para piorar, os dois eram homens!
– E o que você fez?
– Naquele momento, nada. Porém, no dia seguinte, fui ver quem era aqueles pervertidos e descobri que um deles era casado e tinha filhos. O outro era companheiro de uma das filhas do amante.
– Nossa, que confusão! O sogro com o cunhado!
– Pois é, para você ver como esses escravos são depravados e ordinários.
– Nem todos.
– A grande maioria.
– Você fez alguma coisa depois dessa descoberta?
– Não, não quis me envolver com esse tipo de gente. Deixo para que eles descubram por si próprios, o que duvido, pois eles não pensam.
Fiquei impressionado como desprezo que Tomas sentia pelos escravos. Talvez, o fato de seu pai ter um filho de uma afetou o seu subconsciente. Tenho certeza de que, no futuro, ele será um escravocrata de primeira categoria.
Tentei amenizar o clima mudando de assunto. Conversamos sobre diversas coisas, jantamos e depois retomamos. Quando menos esperava, Moisés havia chegado para me levar para casa.
Antes de partir, disse para Tomas, que se despedia em frente a sua casa:
– Boa sorte amanhã com professor Octávio!
– Nem me lembre! – brincou. – Até a próxima!
Trinta minutos após, estava em casa. Na chegada, mamãe me perguntou o que havia feito.
– Conversamos. – respondi.
– Sobre o quê?
– Muitas coisas. Porém, o que mais me chocou foi a maneira que o Tomas  trará e vê os escravos.
– Devo imaginar, filho... Espero que você não seja assim também.
– De modo algum. Vejo-os com indiferença.
– Nem assim. Eles são seres humanos, como nós.  Só não dou alforria para eles por causa de seu pai.
Ouvi aquilo com muita atenção. Nunca pensara assim. Com certeza, aqueles pobres negros sofrem como todos os humanos.
Enfim, não irei pensar sobre isso, pois é desnecessário. Esse foi o meu dia. Um dia que, apesar de conturbado, foi bom.


domingo, 13 de maio de 2012

Dica Musical - Fun.




Bem, quem me conhece sabe meu enorme gosto por músicas Indie Rock e Alternativas. Bandas como Coldplay, The Killers, Kings of Leon e Muse não saem das minhas playlists.
Recentemente, enquanto assistia MTV e dava umas "bizoiadas" por aí na net, descobri essa banda: Fun.. (sim, tem o ponto no nome da banda.)
Essa banda é americana, criada em Nova York. Foi formada por Nate Ruess, originalmente da banda The Format. Ruess deixou seu estado natal, Arizona, para desenvolver sua carreira na cidade se NY (ainda bem, rs). O primeiro disco da banda foi lançado em 2008. Eles têm até uma parceria com Panic at the Disco, outra banda muito massa.
Essa música deles, We Are Young, está fazendo muito sucesso nas paradas mundo afora, Para Minha Alegria...
Espero que gostem da dica, pois eu curti d+++.





Poema de Um Só Verso

Tentei escrever
um poema de um só verso.
Pensei sobre o que fazer,
um pó, um mundo, um universo.
Sobre um amor?
Não, é clichê.
Sobre uma flor?
Não, pois um dia ela irá morrer.
Que tal sobre morte?
Não, pois um dia ela irá acontecer.
Algo que você suporte
sem o vão cair para quem lê.
Sobre uma canção?
Não, pois um dia ela irá cair no esquecimento.
Sobre uma folha no chão?
Não, pois ela desaparecerá com o vento.
Sobre um livro não lido?
Não, pois um dia alguém tomará conhecimento.
Sobre um filme não assistido?
Não, pois ele acabará em algum momento.
Sobre uma manhã ensolarada?
Não, pois depois virá uma tempestade.
Uma tarde nublada?
Não, pois anoitecerá mais tarde.
Sobre um rei?
Não, pois ele perderá a majestade.
Sobre algo que errei?
Não, pois se tonará um alarde.
Sobre uma pequena semente?
Não, pois um dia ela crescerá.
Sobre um pessoa sorridente?
Não, pois um dia ela se entristecerá.
Sobre uma verdade?
Não, pois alguém distorcerá.
Sobre uma bondade?
Não, pois senão ela amaldiçoada será.
Sobre um suicídio?
Não, pois pessoas irão com a vida acabar.
Sobre um homicídio?
Não, pois as pessoas irão matar.
Já sei, uma comédia?
Não, pois os risos um dia vão cessar.
Que tal um drama na Idade Média?
Não, pois um dia as lágrimas vão secar.
Sobre um pesadelo?
Não, pois não vamos mais querer dormir.
Sobre algo que queremos esquecê-lo?
Não, pois à tona um dia ele irá vir.
Sobre um choro?
Não, pois um dia iremos sorrir.
Sobre um coro?
Não, pois depois não vamos querer mais ouvir.
Um poema de um só verso, não consegui escrever.
Quem sabe, quando disperso irei o conhecer.
Mas tenho consciência
de que tudo que escreverei
terá sempre uma consequência,
uma lição, uma experiência.


quinta-feira, 3 de maio de 2012

O Último Conde - Parte I


       

          Realmente não escrevo por gosto. Portanto, o que escrevo é por pura pressão. Quem sabe dessa forma não me ajudará?
          Desde essa primeira página, declaro que não gramaticarei ou me formalizarei, já que é inteiramente meu e só meu. Não escrevo para o professor Octávio ou para meu pai. Ninguém irá lê-lo. Pelo menos é o que eu espero. Esse diário conterá minhas confidências, dores, angústias. E é por esse motivo que não quero que o leiam.
           Creio que já enredei deveras.
           Meu nome é Joaquim Miguel Abreu Gonçalves Batista da Fonseca. É terrível ter um sobrenome tão comprido, porém, agradeço por não ser o Imperador. Nasci no dia trinta de julho de 1836, por conseguinte, tenho quinze anos.
           Hoje é dia oito de setembro, um dia depois do aniversário da independência do país. Vinte e nove anos de Brasil livre. Não irei fazer como outras pessoas que datam os seus diários.
           Enfim. "Escolhi" esse fatídico dia para iniciar meu diário por causa dos acontecimentos que se sucederam ontem.
           Precisei levantar-me cedo para ir de coche para a cidade de São Paulo para as celebrações de sete de setembro. O dia já começara mal, pois para aqueles infelizes que nunca viajaram de sege saibam que é uma viagem que demora em torno de dez horas.
           Por que disse isso? Ninguém vai ler! Mas será bom, para que no futuro, quando inventarem algo mais veloz, lerei essas páginas e relembrarei o quanto sofri.
           Continuando. Cheguei à cidade por volta das quinze horas. As celebrações começaram muito antes de chegarmos. Os desfiles em grande parte já havia acontecido. Porém, algumas pessoas ficaram na festa por não terem o que fazer.
           Meu pai conversava com outros nobres e minha mãe com outras damas. Fiquei disperso nos assuntos de aristocracia, na ladainha falsa.
           Observei o local, mulheres que mal respiravam por causa de seus espartilhos sufocantes. Homens que flertavam com essas mulheres, até mesmo os casados, com os olhos.
           Fui dar um passeio pela enorme cidade de São Paulo, tão enorme que acabei por me perder. Ibaíba nem sequer chega perto de sua imensidão. Andei pelas ruas ladrilhadas, os casarões me confundiam. Quando dobrei uma das inúmeras esquinas que havia dobrado, deparei-me com meu pai, furioso como sempre.
           – Por que você saiu de perto de mim, menino? – disse-me.
           – Estava chato, pai. – respondi.
           – Não interessa se estava chato ou não. Eu lhe disse que era para ficar perto de mim e de sua mãe! Além disso, daqui á alguns anos você terá que conviver com essas pessoas, quando for Conde de Íbaiba.
Não respondi nada. Apenas o acompanhei com sua mão apertando a minha. Pouco tempo depois, estávamos novamente na multidão.
           – Em casa conversaremos sobre isso. – disse-me ele.
           Durante toda a celebração fiquei pensando no que meu pai havia me dito, sobre ser Conde. Creio que não me darei bem como aristocrata.
           Depois dos festejos, que demoraram um bocado, fomos para a casa do meu tio Dimas. Eram dezenove e vinte, estava exausto. Minha mãe me levou a um dos quartos da mansão de meu tio e disse:
           – Filho, hoje haverá um sarau aqui na casa de seu tio. Durma tranquilo, pois eu e seu pai estaremos presentes.
           – A senhora não vai dormir comigo, mãe? – perguntei, já que é comum ela repousar comigo quando fora de casa.
           – Creio que não Miguel. – é assim que ela me chama. – Geralmente essas coisas acabam tarde.
           – Não me importa...
           – Mas à mim, sim!
           – Está cansada. Não vá a esse sarau.
           – Já está decidido. Agora, deite-se e durma com os anjos. – disse-me, levantando e se dirigindo até a porta. Antes de sair, me desejou boa noite.
           Eu amo minha mãe. Sinto-me protegido quando perto dela, mais amado. Se meu pai me colocasse para dormir, decerto que me levaria a inconsciência induzida por pancadas. Porém, também amo meu pai. Só não entendo uma coisa que ele faz. É extremamente simpático e contente com os outros, mas com a família, se transforma em um severo vilão. Apenas isso me incomoda nele.
           Bom, continuando a estória, sentia minhas pernas pesadas. A caminhada que dei ao me perder foi a grande culpada. Ouvi uns sussurros de pessoas chegando e o inicio da música, apenas. Comecei a dormitar.
           Repentinamente, enquanto estava no limbo letárgico, despertei com um barulho muito violento. Percebi que alguém se aproximava da porta de meu quarto, até abri-la. Cerrei os olhos, quase que os fechando totalmente, para aparentar estar em sono profundo. Essa pessoa chegou mais perto de mim. Era minha mãe, mas permaneci com os olhos cerrados. Creio que veio ver se não havia acordado, mal sabia que sim.
           Após se retirar, tentei dormir novamente, em vão. A luminosidade do lado de fora penetrava no meu aposento, dificultando a minha concentração para que o sono viesse, sem avisar. Nem sei se isso existe, mas se existe, não apareceu pra mim.
           Levantei-me da cama, andei pelo quarto. Queria sair, estava curioso com o mundo que ainda não participo, porém que um dia hei de participar, como disse meu pai. Queria conhecê-lo antes do dito comum.Tomei coragem e sai. Abri a porta bem discretamente. O corredor era grande, andei veloz até uma parede que ficava no fim do corrimão. Debrucei-me nele de uma forma que ninguém me visse.
           Observei o sarau, que na verdade era uma festa sem arte alguma. Em um canto estava um grupo de homens que divertiam-se com jogos de cartas, bêbados. Do outro, os comilões, que acabavam-se na mesa de comes e bebes. No centro do salão, casais dançavam frenéticos. Um deles era meus pais, que estavam entretidos e tão harmoniosos como nunca havia visto.
           As pessoas estavam bem vestidas. As mulheres usavam vestidos volumosos, repletos de camadas de seda, que voavam quando elas giravam em suas danças. Algumas giravam tão violentamente que dava para ver as armações de suas vestes. Os homens com suas golas indumentárias e coletes tão justos quanto os espartilhos das mulheres, deixando visíveis as barrigas volumosas. Seus sapatos eram tão pontudos que poderiam ferir.
           Todos flertavam de uma forma mais grotesca e explícita do que a celebração ocorrida tempos antes, muitas vezes com toques obscenos.
           Muitos daqueles eu conhecia de vista, eram nobres – até mais que o meu pai -, pessoas de respeito e importantes não só da cidade, mas também de todo o país.
           Uma ária os envolvia sensualmente. Nunca vira algo assim antes. Talvez seja por isso que minha mãe não quis que participasse ou visse aquilo, era me resguardar. Não deu certo, pois estava lá, vendo tudo o que a noite esconde. Pelo menos era o que pensava antes do que estava por vir.
           Enquanto observava aquele inferno, não percebi que meu tio Dimas subia as escadas com uma mulher loura. Quando me dei conta, fui rasteiro para meu quarto. Olhei pela fresta que deixei, os dois passaram e entraram no ultimo quarto do corredor, que pertencia ao meu tio. Estranhei o fato de que o anfitrião da festa se recolhesse antes mesmo dela acabar.
           Esperei um pouco, até que me senti seguro para sair novamente. Fui ao corrimão, a obscenidade aumentara de leve. Uns casais beijavam-se sem escrúpulos. Os bêbados estavam mais embriagados, cambaleando.
           Observava distraído, até que alguns ruídos vindos do fim do corredor me chamaram a atenção. Andei devagar pelo corredor para não acordar meu tio, até perceber que os ruídos vinham de seu leito.
           Aproximei-me da porta, ouvi respirações ofegantes e gemidos. Ao olhar pela abertura da fechadura, vi que os dois estavam se deitando. Tio Dimas estava sobre a mulher, fazendo movimentos bruscos e provocando gritinhos da mesma. Sabia do que se tratava, já tinha lido isso em alguns livros, mas nunca vera até então. Um sentimento estranho percorreu o meu corpo, causando mudanças nele. Havia estado assim algumas vezes, porém dessa vez foi diferente. Estava em estado de lubricidade.
           Senti-me envergonhado e fui para o meu quarto. Me deitei e a lubricidade cessou. Pensei no que fizera, que foi mal. Se minha mãe queria que não visse esse tipo de coisa era porque tinha um motivo.  Queria que permanecesse com a mente pura. Mas, um dia isso iria acontecer, teria que descobrir. Lamento que não foi da maneira que ela esperava, se é que esperava que descobrisse.
           Não demorou muito para que caísse no sono. Afinal, acordara cedo, viajei por horas, celebrei e já eram quase vinte e três horas.
           No dia seguinte, para ser mais exato, hoje, despertei com minha mãe me acordando.

           – Por Deus, Miguel! – disse-me. – Já são nove e quarenta e não levantou ainda?
           – Dormi bem, mãe. – disse-lhe.
           – Só pode. Vamos, pois ao terminarmos o café, voltaremos para Ibaíba.
           – Tudo bem. Irei descer o mais rápido possível.
           – Espero que sim.
           Quando ela saiu, lembrei-me de ontem à noite. Não sabia o que fazer, pois ao olhar meu tio decerto lembraria o que fizera.
           Lavei-me e me arrumei depressa. No momento em que ia descer, respirei profundamente e fui.
Na sala de jantar, todos estavam sentados à mesa, já se alimentado. Percebi que aquela mulher que se deitou com tio Dimas estava presente. Dei-lhes comprimento, eles replicaram.
           Enquanto me servia, fitei descaradamente tio Dimas. Notei que ele havia percebido, mas mesmo assim continuei a encará-lo.
           Repentinamente, senti que uma força me possuía, uma força que não era boa. Tentei controlá-la, porém não consegui e perguntei ao meu tio.
           – Como foi o sarau ontem, tio Dimas?
           Toda a mesa se voltou para mim, menos aquela moça loura, minha tia talvez, que continuou a refeição.
           – Foi ótima! – respondeu ele, nervoso e atrapalhado. Juntando, continuou. – Teve muitas artes belíssimas, não é Antônio?
           Olhei para meu pai que, enquanto dava um gole em seu chá, me olhava com um olhar repreensivo e assentiu com a cabeça.
           – Tenho certeza que sim. – eu disse. – Especialmente para o senhor, não é, tio?
           Senti que todos me olhavam, apreensivos.
           – Por que diz isso, Joaquim? – rebateu, com medo da resposta.
           – Para o senhor e para essa mulher loura... – disse, apontando para a cuja dita. – Afinal, qual é o seu nome?
           Tio Dimas se engasgou com a bebida, a moça ruborizou-se absurdamente.
           – Rita... – sussurrou, acanhada. – Rita de Cássia...
           – Não seja tímida, Rita, ou seria “titia”? Depois da noite anterior, creio que devo lhe chamar assim.
           A mesa tremeu. Meu pai levantou-se furioso, mas minha mãe o conteve, depois me disse:
           – Miguel, basta!
           – Por que, mamãe? Só queria saber?
           – Disse basta! – gritou.
           Nunca vi minha mãe tão brava comigo. Sabia que tinha feito uma coisa terrível para ela me tratar assim.
           Depois do ocorrido, a mesa ficou em total silêncio, tanto que quase era possível ouvir os passos das formigas.
           Quando terminei, me levantei e fui para meu quarto arrumar minhas coisas. Antes, ouvi minha mãe dizer ao meu tio:
           – Perdoe-me, meu irmão, pela inconveniência...
           – Tudo bem, Maria. – disse ele. – Mas vocês têm que impor limites a esse menino! Ele é muito desaforado!
           Coloquei mina mala em ordem e a levei para a entrada da casa. Meu pai passou por mim, carregando as malas dele e disse baixinho:
           – Você está encrencado!
           Percebi que realmente estava. Culpei-me interiormente por ter dito aquilo. Porém, ao dizer aquelas palavras, estava tomado pela força ruim que veio. Apenas se tratava da malícia que demonstrava. Todos têm um lado mal, o que fiz foi mostrá-lo.
           Subimos na carruagem, nos despedimos de tio Dimas, que aliviou-se com a minha partida, e pegamos a estrada rumo à Ibaíba.
           Chegamos aqui à noite, pouco tempo atrás. Os escravos pegaram nossas bagagens e entraram na frente. Quando chegamos à sala, meu pai me puxou alucinado, parecia até outra pessoa. Apertando meu colarinho, gritou:
           – Agora você vai aprender a respeitar os mais velhos! Seu moleque!
           Ele levantou a mão para me bater, mas minha mãe o impediu. Ela me tirou dos braços dele e disse:
           – Pare com isso, Antônio!
           Meu pai, não entendendo a reação de mamãe, disse:
           – Esse menino tem que aprender a se comportar, Maria!
           – Não é batendo que você vai ensiná-lo!
           – Você viu o que ele disse para seu irmão, não viu? Ainda quer deixá-lo impune?
           – Isso não é motivo para batê-lo.
           – E o seu sumiço que ele deu na celebração? Ainda quer deixá-lo impune?
           – Ele é apenas um garoto. Aliás, São Paulo é uma cidade grande, até eu me perderia lá!
           Papai ia responder, mas percebeu que não iria adiantar. Apenas virou-se e subiu as escadas, resmungando:
           – É por isso que ele é desse jeito. Não vou mais me intrometer mais...
           Após meu pai retirar-se, minha mãe me levou ao sofá e lá disse:
           – Você sabe que o que fez foi muito grave, não sabe?
           – Apenas perguntei algumas coisas, mamãe. – respondi.
           – Certas coisas não se perguntam a ninguém, filho. Muito menos para um familiar.
           – Me perdoe, mamãe.
           – Tudo bem, eu te perdoo. Mas prometa que nunca mais fará isso?
           – Prometo.
           Ela sorriu e me mostrou tranquilidade em seu rosto sereno.
           – Já volto, fique aqui. – me disse, levantando-se e indo à biblioteca, de onde voltou com um caderno nas mãos.
           – Pegue, é um caderno. Dele você fará um diário, onde deve escrever tudo o que fizer, seja bom ou seja mau. Você verá tudo o que fez de mau e tentará mudar. Mas terá que escrever todos os dias!
           Ela me deu o caderno e a agradeci. Dei-lhe um beijo e vim para o meu quarto, onde estou agora.
           Talvez, escrever esse relato tenha me ajudado. Não descobri como, mas sei que ajudou. Esse diário, à partir de hoje, será meu melhor amigo, meu confidente.

Joaquim Miguel Abreu Gonçalves Batista da Fonseca