quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

O Caos Sou Eu - Capítulo II




Capítulo II
Mudança

          Muitos dizem que mudanças são bem-vindas, porque trazem consigo novos rumos, novas expectativas. Que as coisas ruins ficam para trás. Não necessariamente. Até as pessoas mais otimistas falam essas palavras sem muita convicção. Afinal, mudanças são tiros no escuro. Ninguém sabe o que está por vir. Mudanças ocorrem na sombra da dúvida. Na época, também não previa. Pobre garoto.
          Mamãe conseguira depois de muito custo comprar as passagens de todos os filhos para São Paulo. No dia em que a viagem estava marcada, uma tempestade se abateu na pequena cidade. Fontes confirmam que foi uma das piores catástrofes naturais que a região enfrentou na história, mesmo o cálculo sendo feito somente a partir dos anos 1950. O tipo de notícia sensacionalistas que jornalistas desocupados adoram.
          Nossas poucas coisas estavam amontoadas na frente da nossa casa, esperando nosso vizinho que morava mais perto (dois quilômetros) viesse buscar e levar para a rodoviária. Com os ventos e a chuva, roupas, panelas, cobertas e outros utensílios, todos muito simples, se espalharam pelo terreno lamoso. Minha mãe assistia aquilo pela fresta da janela quebrada. Nunca a partir daquele momento vi tanta dor estampado no rosto de uma pessoa. A pouca luz cinza que vinha de fora iluminava seu rosto branco, que ficava cada vez mais úmido por conta das gotas que adentravam o buraco, se misturando com as lágrimas. Suas mãos revezavam em tapar a boca para esconder os soluços, afagar os filhos assustados com os trovões e secar o rosto e os fios de cabelos que teimavam em saltar do lenço que ela mantinha na cabeça. Foi uma imagem que nunca mais sairia da minha mente.
          Faltavam poucas horas para o ônibus partir e mamãe ficava cada vez mais angustiada. Consequentemente, a gente também ficamos. O som dos trovões ecoavam pela casa vazia, além das inúmeras goteiras e choro de criança. De repente, uma buzina assustou a todos, era nosso vizinho que mesmo com a tempestade, veio nos ajudar. Mamãe pegou algumas sacolas vazias que ainda estavam na casa e distribuiu entre os filhos.
          - Tomem. - disse ela, com a voz cortando. - Vamos correr o mais rápido que puder e pegar as coisas do quintal. Vai ser como um jogo, quem conseguir encher a sacola mais rápido vai entrando no carro, até terminar de pegar tudo!
           Ela disse aquilo tentando passar um tranquilidade, mesmo quando ela mesma não estava. Então, cada um de nós pegou uma sacola e nos preparamos para o desafio. Quando começamos, na minha mente, aquilo era uma brincadeira de criança. Corríamos de um lado para outro, nos encharcando e rindo à beça. Pegávamos as roupas lamaçadas e sujas e colocávamos nas sacolas, sem nenhum cuidado. Todos queriam vencer e pegar um bom lugar no carro, de preferência na janela. Mamãe e o vizinho apanhavam as coisas mais pesadas e as colocavam no porta-malas. Foi assim até que todos pegassem tudo. O último a conseguir entrar no carro fui eu, claro.Era uma kombi branca, já muito usada, porém de grande utilidade. O cheiro de roupa molhada, suor e terra tomou conta do veículo, mas isso não nos importava. Estávamos muito animados com a mudança, ir para a cidade grande, conhecer gente nova, isso nos deixava excitados.
        Chegamos na rodoviária faltando dois minutos para o ônibus partir. O motorista era gordo e extremamente mal-humorado, o que fez com que colocássemos nossas bagagens sem organização. Entramos no veículo, que estava cheio de pessoas. Olhando para elas, via rostos cansados, tristes, mas muito esperançosos na vida nova que estava por vir. Como éramos em nove e mamãe havia comprado três pares de poltronas, tivemos que nos dividir em grupos de três. Um grande, um médio e um pequeno. Minha mãe, por sua vez, teve que ir com o caçula no colo. Assim, partimos.
            Fiquei na poltrona em frente a de minha mãe, e de tempos em tempos, me virava para falar com ela. Só para garantir que ela estava lá, que não iria nos abandonar. Isso era pensamento infantil, mas hoje sei que ela jamais seria capaz de fazer isso. Em uma dessas viradas, deparei com ela dormindo. Seu lenço ainda estava úmido, e seus cabelos rebeldes estavam ainda mais aparentes. Seu rosto era marcado pelo tempo, pelo cansaço da vida interiorana e da materna. Mesmo assim, dentre todas as pessoas naquele ônibus, era sem dúvidas o que mais irradiava esperança. Uma pequena gota de lágrima repousava em seu olho direito, não sabia se era de felicidade ou de tristeza.
             A viagem durou um dia a mais que o previsto, por conta da chuva, o que fez o ônibus atolar e parar diversas vezes. Por isso, no último dia de viagem, tivemos que racionar o pouquíssimo alimento que havia sobrado. Não sentei ao lado da janela, pois minha irmã mais velha tinha tomado conta do lugar com seu enorme corpo (o que me fazia refletir, afinal tínhamos o suficiente para comer, mas não tanto para ficar daquele tamanho). Porém, isso não me impedia de ficar observando a paisagem passando rápida pelas janelas. Ficava horas apenas observando, quando não era interrompido pela grande figura da minha irmã que se projetava pra frente buscando acomodar melhor sua abundância.
            Parecia que estava chovendo por todo o país, pois em nenhum instante a chuva cessou, nem mesmo quando chegamos em São Paulo, numa noite. A chegada aliás, que nunca esquecerei. Era fim de ano, então as luzinhas de natal contrastavam com as inúmeras outras luzes dos prédios e das ruas. Tudo era grandioso, exagerado, deslumbrante. As ruas estavam encharcadas, as pessoas andavam depressa, e as que andavam devagar levavam uma garrafa de bebida na mão. Além disso, ouvia-se diversas músicas. Ficamos alguns minutos andando pela cidade até chegarmos na rodoviária do Tietê. Descemos, pegamos nossas bagagens molhadas e mal cheirosas e fomos para um local onde haviam bancos. Minha mãe olhava perdida para o lugar, mas ela aconchegou os filhos ali mesmo e os fez dormir, esperando o dia amanhecer para decidir o que fazer.