sábado, 20 de junho de 2015

Família Oliveira - Capítulo I




   

Os saltos de Dona Lucy ecoavam na sala branca da mansão. Seus sapatos caros andavam inquietos pelo piso de mármore fazendo um barulho constante e incômodo, como um relógio quebrado. Sua filha, Célia, balançava compulsivamente os pés, inquieta e pensando como sua mãe, uma idosa com quase 70 anos, conseguia perambular por tanto tempo num salto tão alto e tão rápido.
Aquela aflição tinha um porquê: Valdo, o marido e pai, demorava do retorno do hospital no qual havia passado por uma complicada cirurgia no intestino. O celular de Felipe, o outro filho do casal que foi acompanhar o pai, só chamava. De repente, um barulho rompe os ecos dos sapatos, finalmente os portões da propriedade sendo abertos e rapidamente fechados.
                - Aleluia Valdo! Pensei que tinha morrido de uma vez no caminho! - disse Dona Lucy, tomando a cadeira de rodas das mãos do filho e guiando-a pela sala. - Por que não atendia esse telefone Felipe?
- Dormi no caminho mãe. - respondeu o rapaz. - Estava cansado demais, passei a noite no hospital, a senhora sabe.
- E quem veio dirigindo?
- Eu estava, Dona Lucy. - respondeu Ana, uma das empregadas da casa, que entrara na residência, fechando a enorme porta em seguida.
- Você? Como assim Célia? Você permitiu isso? E não me falou nada!
                - Mãe, eu que iria buscá-los, mas não acordei me sentindo muito bem. - disse a filha, levantando-se. - O que importa é que está tudo bem, chegaram são e salvos. Como você está, papai?
- Finalmente alguém se lembrou que estou de volta! - reclamou o velho Valdo. - Estou bem filha, cansado e dolorido, mas bem.
- Vamos senhor Valdo, vou te levar lá pra cima para que possamos trocar os curativos e tomar um banho bem quentinho. – disse Ana, que estaria responsável por cuidar do recém-operado, pois tinha conhecimentos em cuidados com idosos.
- Nada disso, sua atirada! Ninguém põe as mãos nele a não ser eu mesma! – rezingou Dona Lucy, correndo o mais rápido que conseguia com seus saltos e jóias pesadas.
- Finalmente em casa! – disse Felipe, jogando-se no sofá e rindo da situação.
- Graças a Deus. – falou Célia, sentando-se ao lado do irmão, porém com mais delicadeza. – Eles vão longe ainda, são fortes.
- Pois é. – indagou o rapaz. – Vaso ruim não quebra tão fácil.
- Que horror Felipe!
Os dois irmãos riram aparentemente felizes com a volta da normalidade na casa.


Realmente, Dona Lucy e Valdo era um casal forte. Vindos do interior da Paraíba, vieram para São Paulo buscando uma vida melhor, como muitos outros, porém, ambos já tinham certa idade quando decidiram migrar. Lucyneide e Erisvaldo Oliveira, como se chamam na verdade, passaram por muitos apertos da cidade grande nos primeiros meses. Ela, com 30 anos, semi-analfabeta, magra demais e já grávida de Célia, cuidava da casinha simples que conseguiram com muito esforço, enquanto ele, com 33, forte e viril, fazia uns trabalhos como pedreiro.
Os anos foram se passando. Valdo viu que a indústria de construção civil crescia e decidiu investir o pouco que havia guardado no ramo. Conforme as coisas iam prosperando, Ana se prontificou a estudar, enquanto seu marido cuidava dos negócios. Nesse meio tempo, Felipe nasceu. A conta bancária, a casa, o número de jóias e a barriga de seu Valdo cresciam cada vez mais. Assim, a família Oliveira conseguiu entrar para a alta sociedade paulistana e vivem com bastante comodidade.
Célia, a filha mais velha, mantinha os traços da mãe quando mais nova. Alta, magra e com aspectos europeus, estava chegando aos 40 anos. Arquiteta, nunca quis ter filhos e casar, o que deixavam seus pais muito desapontados. Já Felipe, publicitário com uns cinco anos a menos que a irmã, era casado com Angélica, que estava esperando o primeiro filho do casal. 


Os irmãos continuavam a conversa na sala:
- Então Célia, o papo está legal, mas preciso ir pra minha casa. - disse Felipe. - Angélica também precisa da minha ajuda.
-  Está bem, vamos marcar de sair um dia. Faz tempo que não fazemos algo juntos.
- Beleza, só marcar.
Antes de ir embora, Felipe foi até o quarto das pais para se despedir. Ao entrar, deparou-se com sua mãe dormindo na cama.
- É velha, é durona mas uma hora cansa. - disse baixinho, beijando a testa de Dona Lucy.
- Quem está aí? - falou uma voz vinda do banheiro trancado.
- Sou eu, o Felipe, Ana. Posso falar com meu pai?
- Ah, Felipe. Só um minuto.
Depois de uns instantes, a empregada abriu a porta. O rapaz entrou no enorme banheiro, onde encontrou o pai numa cadeira, com muitos curativos na barriga grande.
- Ele está um pouco drogue, por conta dos remédios. - disse Ana.
- Imagino, coitado.
Felipe passou uma das mãos nos poucos cabelos de Valdo, que soltou um grunhido. Com a mesma mão, fez um movimento leve e levou-a até os fartos seios de Ana, que tomou um pequeno susto.
- Não, aqui não. - reclamou a moça.
- Estou com saudades.
- Outro dia, hoje não dá.
O rapaz então virou-se para o espelho. Viu seu reflexo, um homem alto e forte, moreno e de barba bem feita, os pelos saltando pelo colarinho da camisa. Os resquícios do que Seu Valdo foi um dia. Por trás dele, Ana o observava. Era bonita, olhos azuis grandes e brilhantes, cabelos loiros presos num rabo de cavalo alto e de pele rosada, com aproximadamente 30 anos. Com os lábios vermelhos e uniforme branco, era a clara visão de uma fantasia que todo homem já teve. Porém, ao contrário de sua aparência dizia, era muito esforçada e contida, introspectiva.
- Outro dia. - repetiu Felipe, saindo sem olhar para trás, claramente irritado.

O céu estava em sua cor mais escura, quando um grito quebrou o silêncio da noite. Logo depois. Célia levantou-se vagarosamente, alguém estava batendo muito forte na porta de seu quarto. Ao abri-la, deu de cara com sua mãe, descabelada.
- Filha, seu pai não está de sentindo bem! Está roxo que nem uma cebola!
- Calma mãe, vamos chamar uma ambulância. - disse ela.
- Não! Leve-o você mesmo pro hospital!
- Mãe, agora não tenho como! Estou um pouco tonta por causa dos remédios que tomo para dormir. Vou ligar para a emergência.
Nesse momento, surgiu Ana, que depois de ficar a par da situação, disse:
- Devo avisar o senhor Felipe?
- Pode. - falou Célia.
Dona Lucy choramingava sem parar, quando somente uma hora depois, a ambulância chegou, ao mesmo tempo em que Felipe.
Já no hospital, Seu Valdo foi levado imediatamente para a UTI, pois seu estado era crítico e precisava de uma intervenção urgente. Enquanto isso, a família aguardava numa sala reservada.
Algum tempo depois, um dos médicos entrou na sala, com uma feição pouco agradável.
- Infelizmente, a notícia não é a que eu queria dar. O Seu Valdo não aguentou as paradas cardíacas e veio a óbito.
Dona Lucy não conseguiu conter as lágrimas e começou a gritar, desesperada. Célia, que estava ao seu lado, acolheu a mãe em seus braços, e chorou um pouco também. Felipe passou a mão nas costas da mãe, e logo foi falar com o médico, que ainda estava na sala, desapontado com a cena.
- Sinto muitíssimo. - disse ele.
- Obrigado. - respondeu Felipe, o cumprimentando com um aperto de mão.
- Mas tem uma coisa que eu preciso falar. - retomou o médico. - Enquanto cuidávamos do seu pai, percebemos algo estranho. Ele faleceu por conta de uma infecção, mas não sabemos como ele a contraiu, pois o Seu Valdo saiu daqui com tudo em ordem. As marcas da cirurgia estavam cicatrizando normalmente e pelo que podemos notar, continuavam intactas. Os exames não apontaram nenhuma negligência ou algo fora do normal.
- Ana e todos nós cuidamos muito bem dele.
- Sim, a empregada e vocês foram ótimos, o que nos deixou mais intrigados. Se você preferir, podemos mandar o corpo do seu pai para um instituto que fará uma pesquisa mais precisa, para descobrirmos realmente o que houve.
Felipe olhou para sua mãe que se debatia no colo de Célia, que tentava falar coisar para acalmá-la. Virou-se novamente para o médico, e disse:
- Melhor não doutor, não quero causar mais sofrimento.