Realmente não escrevo por gosto.
Portanto, o que escrevo é por pura pressão. Quem sabe dessa forma não me
ajudará?
Desde essa primeira página, declaro que
não gramaticarei ou me formalizarei, já que é inteiramente meu e só meu. Não
escrevo para o professor Octávio ou para meu pai. Ninguém irá lê-lo. Pelo menos
é o que eu espero. Esse diário conterá minhas confidências, dores, angústias. E
é por esse motivo que não quero que o leiam.
Creio que já enredei deveras.
Meu nome é Joaquim Miguel Abreu Gonçalves
Batista da Fonseca. É terrível ter um sobrenome tão comprido, porém, agradeço
por não ser o Imperador. Nasci no dia trinta de julho de 1836, por conseguinte,
tenho quinze anos.
Hoje é dia oito de setembro, um dia depois
do aniversário da independência do país. Vinte e nove anos de Brasil livre. Não
irei fazer como outras pessoas que datam os seus diários.
Enfim.
"Escolhi" esse fatídico dia para iniciar meu diário por causa dos
acontecimentos que se sucederam ontem.
Precisei levantar-me cedo para ir de coche
para a cidade de São Paulo para as celebrações de sete de setembro. O dia já
começara mal, pois para aqueles infelizes que nunca viajaram de sege saibam que
é uma viagem que demora em torno de dez horas.
Por que disse isso? Ninguém vai ler! Mas
será bom, para que no futuro, quando inventarem algo mais veloz, lerei essas
páginas e relembrarei o quanto sofri.
Continuando. Cheguei à cidade por volta
das quinze horas. As celebrações começaram muito antes de chegarmos. Os
desfiles em grande parte já havia acontecido. Porém, algumas pessoas ficaram na
festa por não terem o que fazer.
Meu pai conversava com outros nobres e
minha mãe com outras damas. Fiquei disperso nos assuntos de aristocracia, na
ladainha falsa.
Observei o local, mulheres que mal respiravam
por causa de seus espartilhos
sufocantes.
Homens que flertavam com essas mulheres, até mesmo os casados, com os olhos.
Fui dar um passeio pela enorme cidade de
São Paulo, tão enorme que acabei por me perder. Ibaíba nem sequer chega perto
de sua imensidão. Andei pelas ruas ladrilhadas, os casarões me confundiam.
Quando dobrei uma das inúmeras esquinas que havia dobrado, deparei-me com meu
pai, furioso como sempre.
– Por que você saiu de perto de mim,
menino? – disse-me.
– Estava chato, pai. – respondi.
– Não interessa se estava chato ou não. Eu
lhe disse que era para ficar perto de mim e de sua mãe! Além disso, daqui á
alguns anos você terá que conviver com essas pessoas, quando for Conde de
Íbaiba.
Não respondi nada. Apenas o acompanhei com
sua mão apertando a minha. Pouco tempo depois, estávamos novamente na multidão.
– Em casa conversaremos sobre isso. –
disse-me ele.
Durante toda a celebração fiquei pensando
no que meu pai havia me dito, sobre ser Conde. Creio que não me darei bem como
aristocrata.
Depois dos festejos, que demoraram um
bocado, fomos para a casa do meu tio Dimas. Eram dezenove e vinte, estava
exausto. Minha mãe me levou a um dos quartos da mansão de meu tio e disse:
– Filho, hoje haverá um sarau aqui na casa
de seu tio. Durma tranquilo, pois eu e seu pai estaremos presentes.
– A senhora não vai dormir comigo, mãe? –
perguntei, já que é comum ela repousar comigo quando fora de casa.
– Creio que não Miguel. – é assim que ela
me chama. – Geralmente essas coisas acabam tarde.
– Não me importa...
– Mas à mim, sim!
– Está cansada. Não vá a esse sarau.
– Já está decidido. Agora, deite-se e
durma com os anjos. – disse-me, levantando e se dirigindo até a porta. Antes de
sair, me desejou boa noite.
Eu amo minha mãe. Sinto-me protegido
quando perto dela, mais amado. Se meu pai me colocasse para dormir, decerto que
me levaria a inconsciência induzida por pancadas. Porém, também amo meu pai. Só
não entendo uma coisa que ele faz. É extremamente simpático e contente com os
outros, mas com a família, se transforma em um severo vilão. Apenas isso me
incomoda nele.
Bom, continuando a estória, sentia minhas
pernas pesadas. A caminhada que dei ao me perder foi a grande culpada. Ouvi uns
sussurros de pessoas chegando e o inicio da música, apenas. Comecei a dormitar.
Repentinamente, enquanto estava no limbo
letárgico, despertei com um barulho muito violento. Percebi que alguém se
aproximava da porta de meu quarto, até abri-la. Cerrei os olhos, quase que os
fechando totalmente, para aparentar estar em sono profundo. Essa pessoa chegou
mais perto de mim. Era minha mãe, mas permaneci com os olhos cerrados. Creio
que veio ver se não havia acordado, mal sabia que sim.
Após se retirar, tentei dormir novamente,
em vão. A luminosidade do lado de fora penetrava no meu aposento, dificultando
a minha concentração para que o sono viesse, sem avisar. Nem sei se isso
existe, mas se existe, não apareceu pra mim.
Levantei-me da cama, andei pelo quarto.
Queria sair, estava curioso com o mundo que ainda não participo, porém que um dia
hei de participar, como disse meu pai. Queria conhecê-lo antes do dito comum.Tomei coragem e sai. Abri a porta bem
discretamente. O corredor era grande, andei veloz até uma parede que ficava no
fim do corrimão. Debrucei-me nele de uma forma que ninguém me visse.
Observei o sarau, que na verdade era uma
festa sem arte alguma. Em um canto estava um grupo de homens que divertiam-se
com jogos de cartas, bêbados. Do outro, os comilões, que acabavam-se na mesa de
comes e bebes. No centro do salão, casais dançavam frenéticos. Um deles era
meus pais, que estavam entretidos e tão harmoniosos como nunca havia visto.
As pessoas estavam bem vestidas. As
mulheres usavam vestidos volumosos, repletos de camadas de seda, que voavam
quando elas giravam em suas danças. Algumas giravam tão violentamente que dava
para ver as armações de suas vestes. Os homens com suas golas indumentárias e
coletes tão justos quanto os espartilhos das mulheres, deixando visíveis as
barrigas volumosas. Seus sapatos eram tão pontudos que poderiam ferir.
Todos flertavam de uma forma mais grotesca
e explícita do que a celebração ocorrida tempos antes, muitas vezes com toques
obscenos.
Muitos daqueles eu conhecia de vista, eram
nobres – até mais que o meu pai -, pessoas de respeito e importantes não só da
cidade, mas também de todo o país.
Uma ária os envolvia sensualmente. Nunca
vira algo assim antes. Talvez seja por isso que minha mãe não quis que
participasse ou visse aquilo, era me resguardar. Não deu certo, pois estava lá,
vendo tudo o que a noite esconde. Pelo menos era o que pensava antes do que
estava por vir.
Enquanto observava aquele inferno, não
percebi que meu tio Dimas subia as escadas com uma mulher loura. Quando me dei
conta, fui rasteiro para meu quarto. Olhei pela fresta que deixei, os dois
passaram e entraram no ultimo quarto do corredor, que pertencia ao meu tio.
Estranhei o fato de que o anfitrião da festa se recolhesse antes mesmo dela
acabar.
Esperei um pouco, até que me senti seguro
para sair novamente. Fui ao corrimão, a obscenidade aumentara de leve. Uns
casais beijavam-se sem escrúpulos. Os bêbados estavam mais embriagados,
cambaleando.
Observava distraído, até que alguns ruídos
vindos do fim do corredor me chamaram a atenção. Andei devagar pelo corredor
para não acordar meu tio, até perceber que os ruídos vinham de seu leito.
Aproximei-me da porta, ouvi respirações
ofegantes e gemidos. Ao olhar pela abertura da fechadura, vi que os dois
estavam se deitando. Tio Dimas estava sobre a mulher, fazendo movimentos bruscos
e provocando gritinhos da mesma. Sabia do que se tratava, já tinha lido isso em
alguns livros, mas nunca vera até então. Um sentimento estranho percorreu o meu
corpo, causando mudanças nele. Havia estado assim algumas vezes, porém dessa
vez foi diferente. Estava em estado de lubricidade.
Senti-me envergonhado e fui para o meu
quarto. Me deitei e a lubricidade cessou. Pensei no que fizera, que foi mal. Se
minha mãe queria que não visse esse tipo de coisa era porque tinha um
motivo. Queria que permanecesse com a
mente pura. Mas, um dia isso iria acontecer, teria que descobrir. Lamento que
não foi da maneira que ela esperava, se é que esperava que descobrisse.
Não demorou muito para que caísse no sono.
Afinal, acordara cedo, viajei por horas, celebrei e já eram quase vinte e três
horas.
No dia seguinte, para ser mais exato,
hoje, despertei com minha mãe me acordando.
– Por Deus, Miguel! – disse-me. – Já são
nove e quarenta e não levantou ainda?
– Dormi bem, mãe. – disse-lhe.
– Só pode. Vamos, pois ao terminarmos o
café, voltaremos para Ibaíba.
– Tudo bem. Irei descer o mais rápido
possível.
– Espero que sim.
Quando ela saiu, lembrei-me de ontem à
noite. Não sabia o que fazer, pois ao olhar meu tio decerto lembraria o que
fizera.
Lavei-me e me arrumei depressa. No momento
em que ia descer, respirei profundamente e fui.
Na sala de jantar, todos estavam sentados
à mesa, já se alimentado. Percebi que aquela mulher que se deitou com tio Dimas
estava presente. Dei-lhes comprimento, eles replicaram.
Enquanto me servia, fitei descaradamente
tio Dimas. Notei que ele havia percebido, mas mesmo assim continuei a
encará-lo.
Repentinamente, senti que uma força me
possuía, uma força que não era boa. Tentei controlá-la, porém não consegui e
perguntei ao meu tio.
– Como foi o sarau ontem, tio Dimas?
Toda a mesa se voltou para mim, menos
aquela moça loura, minha tia talvez, que continuou a refeição.
– Foi ótima! – respondeu ele, nervoso e
atrapalhado. Juntando, continuou. – Teve muitas artes belíssimas, não é
Antônio?
Olhei para meu pai que, enquanto dava um
gole em seu chá, me olhava com um olhar repreensivo e assentiu com a cabeça.
– Tenho certeza que sim. – eu disse. –
Especialmente para o senhor, não é, tio?
Senti que todos me olhavam, apreensivos.
– Por que diz isso, Joaquim? – rebateu, com
medo da resposta.
– Para o senhor e para essa mulher
loura... – disse, apontando para a cuja dita. – Afinal, qual é o seu nome?
Tio Dimas se engasgou com a bebida, a moça
ruborizou-se absurdamente.
– Rita... – sussurrou, acanhada. – Rita de
Cássia...
– Não seja tímida, Rita, ou seria “titia”?
Depois da noite anterior, creio que devo lhe chamar assim.
A mesa tremeu. Meu pai levantou-se
furioso, mas minha mãe o conteve, depois me disse:
– Miguel, basta!
– Por que, mamãe? Só queria saber?
– Disse basta! – gritou.
Nunca vi minha mãe tão brava comigo. Sabia
que tinha feito uma coisa terrível para ela me tratar assim.
Depois do ocorrido, a mesa ficou em total
silêncio, tanto que quase era possível ouvir os passos das formigas.
Quando terminei, me levantei e fui para
meu quarto arrumar minhas coisas. Antes, ouvi minha mãe dizer ao meu tio:
– Perdoe-me, meu irmão, pela
inconveniência...
– Tudo bem, Maria. – disse ele. – Mas vocês
têm que impor limites a esse menino! Ele é muito desaforado!
Coloquei mina mala em ordem e a levei para
a entrada da casa. Meu pai passou por mim, carregando as malas dele e disse
baixinho:
– Você está encrencado!
Percebi que realmente estava. Culpei-me
interiormente por ter dito aquilo. Porém, ao dizer aquelas palavras, estava
tomado pela força ruim que veio. Apenas se tratava da malícia que demonstrava. Todos
têm um lado mal, o que fiz foi mostrá-lo.
Subimos na carruagem, nos despedimos de
tio Dimas, que aliviou-se com a minha partida, e pegamos a estrada rumo à
Ibaíba.
Chegamos aqui à noite, pouco tempo atrás. Os
escravos pegaram nossas bagagens e entraram na frente. Quando chegamos à sala,
meu pai me puxou alucinado, parecia até outra pessoa. Apertando meu colarinho,
gritou:
– Agora você vai aprender a respeitar os
mais velhos! Seu moleque!
Ele levantou a mão para me bater, mas
minha mãe o impediu. Ela me tirou dos braços dele e disse:
– Pare com isso, Antônio!
Meu pai, não entendendo a reação de mamãe,
disse:
– Esse menino tem que aprender a se
comportar, Maria!
– Não é batendo que você vai ensiná-lo!
– Você viu o que ele disse para seu irmão,
não viu? Ainda quer deixá-lo impune?
– Isso não é motivo para batê-lo.
– E o seu sumiço que ele deu na
celebração? Ainda quer deixá-lo impune?
– Ele é apenas um garoto. Aliás, São Paulo
é uma cidade grande, até eu me perderia lá!
Papai ia responder, mas percebeu que não
iria adiantar. Apenas virou-se e subiu as escadas, resmungando:
– É por isso que ele é desse jeito. Não
vou mais me intrometer mais...
Após meu pai retirar-se, minha mãe me
levou ao sofá e lá disse:
– Você sabe que o que fez foi muito grave,
não sabe?
– Apenas perguntei algumas coisas, mamãe. –
respondi.
– Certas coisas não se perguntam a
ninguém, filho. Muito menos para um familiar.
– Me perdoe, mamãe.
– Tudo bem, eu te perdoo. Mas prometa que
nunca mais fará isso?
– Prometo.
Ela sorriu e me mostrou tranquilidade em
seu rosto sereno.
– Já volto, fique aqui. – me disse,
levantando-se e indo à biblioteca, de onde voltou com um caderno nas mãos.
– Pegue, é um caderno. Dele você fará um
diário, onde deve escrever tudo o que fizer, seja bom ou seja mau. Você verá
tudo o que fez de mau e tentará mudar. Mas terá que escrever todos os dias!
Ela me deu o caderno e a agradeci. Dei-lhe
um beijo e vim para o meu quarto, onde estou agora.
Talvez, escrever esse relato tenha me
ajudado. Não descobri como, mas sei que ajudou. Esse diário, à partir de hoje,
será meu melhor amigo, meu confidente.
Joaquim Miguel Abreu Gonçalves Batista da Fonseca