quinta-feira, 3 de maio de 2012

O Último Conde - Parte I


       

          Realmente não escrevo por gosto. Portanto, o que escrevo é por pura pressão. Quem sabe dessa forma não me ajudará?
          Desde essa primeira página, declaro que não gramaticarei ou me formalizarei, já que é inteiramente meu e só meu. Não escrevo para o professor Octávio ou para meu pai. Ninguém irá lê-lo. Pelo menos é o que eu espero. Esse diário conterá minhas confidências, dores, angústias. E é por esse motivo que não quero que o leiam.
           Creio que já enredei deveras.
           Meu nome é Joaquim Miguel Abreu Gonçalves Batista da Fonseca. É terrível ter um sobrenome tão comprido, porém, agradeço por não ser o Imperador. Nasci no dia trinta de julho de 1836, por conseguinte, tenho quinze anos.
           Hoje é dia oito de setembro, um dia depois do aniversário da independência do país. Vinte e nove anos de Brasil livre. Não irei fazer como outras pessoas que datam os seus diários.
           Enfim. "Escolhi" esse fatídico dia para iniciar meu diário por causa dos acontecimentos que se sucederam ontem.
           Precisei levantar-me cedo para ir de coche para a cidade de São Paulo para as celebrações de sete de setembro. O dia já começara mal, pois para aqueles infelizes que nunca viajaram de sege saibam que é uma viagem que demora em torno de dez horas.
           Por que disse isso? Ninguém vai ler! Mas será bom, para que no futuro, quando inventarem algo mais veloz, lerei essas páginas e relembrarei o quanto sofri.
           Continuando. Cheguei à cidade por volta das quinze horas. As celebrações começaram muito antes de chegarmos. Os desfiles em grande parte já havia acontecido. Porém, algumas pessoas ficaram na festa por não terem o que fazer.
           Meu pai conversava com outros nobres e minha mãe com outras damas. Fiquei disperso nos assuntos de aristocracia, na ladainha falsa.
           Observei o local, mulheres que mal respiravam por causa de seus espartilhos sufocantes. Homens que flertavam com essas mulheres, até mesmo os casados, com os olhos.
           Fui dar um passeio pela enorme cidade de São Paulo, tão enorme que acabei por me perder. Ibaíba nem sequer chega perto de sua imensidão. Andei pelas ruas ladrilhadas, os casarões me confundiam. Quando dobrei uma das inúmeras esquinas que havia dobrado, deparei-me com meu pai, furioso como sempre.
           – Por que você saiu de perto de mim, menino? – disse-me.
           – Estava chato, pai. – respondi.
           – Não interessa se estava chato ou não. Eu lhe disse que era para ficar perto de mim e de sua mãe! Além disso, daqui á alguns anos você terá que conviver com essas pessoas, quando for Conde de Íbaiba.
Não respondi nada. Apenas o acompanhei com sua mão apertando a minha. Pouco tempo depois, estávamos novamente na multidão.
           – Em casa conversaremos sobre isso. – disse-me ele.
           Durante toda a celebração fiquei pensando no que meu pai havia me dito, sobre ser Conde. Creio que não me darei bem como aristocrata.
           Depois dos festejos, que demoraram um bocado, fomos para a casa do meu tio Dimas. Eram dezenove e vinte, estava exausto. Minha mãe me levou a um dos quartos da mansão de meu tio e disse:
           – Filho, hoje haverá um sarau aqui na casa de seu tio. Durma tranquilo, pois eu e seu pai estaremos presentes.
           – A senhora não vai dormir comigo, mãe? – perguntei, já que é comum ela repousar comigo quando fora de casa.
           – Creio que não Miguel. – é assim que ela me chama. – Geralmente essas coisas acabam tarde.
           – Não me importa...
           – Mas à mim, sim!
           – Está cansada. Não vá a esse sarau.
           – Já está decidido. Agora, deite-se e durma com os anjos. – disse-me, levantando e se dirigindo até a porta. Antes de sair, me desejou boa noite.
           Eu amo minha mãe. Sinto-me protegido quando perto dela, mais amado. Se meu pai me colocasse para dormir, decerto que me levaria a inconsciência induzida por pancadas. Porém, também amo meu pai. Só não entendo uma coisa que ele faz. É extremamente simpático e contente com os outros, mas com a família, se transforma em um severo vilão. Apenas isso me incomoda nele.
           Bom, continuando a estória, sentia minhas pernas pesadas. A caminhada que dei ao me perder foi a grande culpada. Ouvi uns sussurros de pessoas chegando e o inicio da música, apenas. Comecei a dormitar.
           Repentinamente, enquanto estava no limbo letárgico, despertei com um barulho muito violento. Percebi que alguém se aproximava da porta de meu quarto, até abri-la. Cerrei os olhos, quase que os fechando totalmente, para aparentar estar em sono profundo. Essa pessoa chegou mais perto de mim. Era minha mãe, mas permaneci com os olhos cerrados. Creio que veio ver se não havia acordado, mal sabia que sim.
           Após se retirar, tentei dormir novamente, em vão. A luminosidade do lado de fora penetrava no meu aposento, dificultando a minha concentração para que o sono viesse, sem avisar. Nem sei se isso existe, mas se existe, não apareceu pra mim.
           Levantei-me da cama, andei pelo quarto. Queria sair, estava curioso com o mundo que ainda não participo, porém que um dia hei de participar, como disse meu pai. Queria conhecê-lo antes do dito comum.Tomei coragem e sai. Abri a porta bem discretamente. O corredor era grande, andei veloz até uma parede que ficava no fim do corrimão. Debrucei-me nele de uma forma que ninguém me visse.
           Observei o sarau, que na verdade era uma festa sem arte alguma. Em um canto estava um grupo de homens que divertiam-se com jogos de cartas, bêbados. Do outro, os comilões, que acabavam-se na mesa de comes e bebes. No centro do salão, casais dançavam frenéticos. Um deles era meus pais, que estavam entretidos e tão harmoniosos como nunca havia visto.
           As pessoas estavam bem vestidas. As mulheres usavam vestidos volumosos, repletos de camadas de seda, que voavam quando elas giravam em suas danças. Algumas giravam tão violentamente que dava para ver as armações de suas vestes. Os homens com suas golas indumentárias e coletes tão justos quanto os espartilhos das mulheres, deixando visíveis as barrigas volumosas. Seus sapatos eram tão pontudos que poderiam ferir.
           Todos flertavam de uma forma mais grotesca e explícita do que a celebração ocorrida tempos antes, muitas vezes com toques obscenos.
           Muitos daqueles eu conhecia de vista, eram nobres – até mais que o meu pai -, pessoas de respeito e importantes não só da cidade, mas também de todo o país.
           Uma ária os envolvia sensualmente. Nunca vira algo assim antes. Talvez seja por isso que minha mãe não quis que participasse ou visse aquilo, era me resguardar. Não deu certo, pois estava lá, vendo tudo o que a noite esconde. Pelo menos era o que pensava antes do que estava por vir.
           Enquanto observava aquele inferno, não percebi que meu tio Dimas subia as escadas com uma mulher loura. Quando me dei conta, fui rasteiro para meu quarto. Olhei pela fresta que deixei, os dois passaram e entraram no ultimo quarto do corredor, que pertencia ao meu tio. Estranhei o fato de que o anfitrião da festa se recolhesse antes mesmo dela acabar.
           Esperei um pouco, até que me senti seguro para sair novamente. Fui ao corrimão, a obscenidade aumentara de leve. Uns casais beijavam-se sem escrúpulos. Os bêbados estavam mais embriagados, cambaleando.
           Observava distraído, até que alguns ruídos vindos do fim do corredor me chamaram a atenção. Andei devagar pelo corredor para não acordar meu tio, até perceber que os ruídos vinham de seu leito.
           Aproximei-me da porta, ouvi respirações ofegantes e gemidos. Ao olhar pela abertura da fechadura, vi que os dois estavam se deitando. Tio Dimas estava sobre a mulher, fazendo movimentos bruscos e provocando gritinhos da mesma. Sabia do que se tratava, já tinha lido isso em alguns livros, mas nunca vera até então. Um sentimento estranho percorreu o meu corpo, causando mudanças nele. Havia estado assim algumas vezes, porém dessa vez foi diferente. Estava em estado de lubricidade.
           Senti-me envergonhado e fui para o meu quarto. Me deitei e a lubricidade cessou. Pensei no que fizera, que foi mal. Se minha mãe queria que não visse esse tipo de coisa era porque tinha um motivo.  Queria que permanecesse com a mente pura. Mas, um dia isso iria acontecer, teria que descobrir. Lamento que não foi da maneira que ela esperava, se é que esperava que descobrisse.
           Não demorou muito para que caísse no sono. Afinal, acordara cedo, viajei por horas, celebrei e já eram quase vinte e três horas.
           No dia seguinte, para ser mais exato, hoje, despertei com minha mãe me acordando.

           – Por Deus, Miguel! – disse-me. – Já são nove e quarenta e não levantou ainda?
           – Dormi bem, mãe. – disse-lhe.
           – Só pode. Vamos, pois ao terminarmos o café, voltaremos para Ibaíba.
           – Tudo bem. Irei descer o mais rápido possível.
           – Espero que sim.
           Quando ela saiu, lembrei-me de ontem à noite. Não sabia o que fazer, pois ao olhar meu tio decerto lembraria o que fizera.
           Lavei-me e me arrumei depressa. No momento em que ia descer, respirei profundamente e fui.
Na sala de jantar, todos estavam sentados à mesa, já se alimentado. Percebi que aquela mulher que se deitou com tio Dimas estava presente. Dei-lhes comprimento, eles replicaram.
           Enquanto me servia, fitei descaradamente tio Dimas. Notei que ele havia percebido, mas mesmo assim continuei a encará-lo.
           Repentinamente, senti que uma força me possuía, uma força que não era boa. Tentei controlá-la, porém não consegui e perguntei ao meu tio.
           – Como foi o sarau ontem, tio Dimas?
           Toda a mesa se voltou para mim, menos aquela moça loura, minha tia talvez, que continuou a refeição.
           – Foi ótima! – respondeu ele, nervoso e atrapalhado. Juntando, continuou. – Teve muitas artes belíssimas, não é Antônio?
           Olhei para meu pai que, enquanto dava um gole em seu chá, me olhava com um olhar repreensivo e assentiu com a cabeça.
           – Tenho certeza que sim. – eu disse. – Especialmente para o senhor, não é, tio?
           Senti que todos me olhavam, apreensivos.
           – Por que diz isso, Joaquim? – rebateu, com medo da resposta.
           – Para o senhor e para essa mulher loura... – disse, apontando para a cuja dita. – Afinal, qual é o seu nome?
           Tio Dimas se engasgou com a bebida, a moça ruborizou-se absurdamente.
           – Rita... – sussurrou, acanhada. – Rita de Cássia...
           – Não seja tímida, Rita, ou seria “titia”? Depois da noite anterior, creio que devo lhe chamar assim.
           A mesa tremeu. Meu pai levantou-se furioso, mas minha mãe o conteve, depois me disse:
           – Miguel, basta!
           – Por que, mamãe? Só queria saber?
           – Disse basta! – gritou.
           Nunca vi minha mãe tão brava comigo. Sabia que tinha feito uma coisa terrível para ela me tratar assim.
           Depois do ocorrido, a mesa ficou em total silêncio, tanto que quase era possível ouvir os passos das formigas.
           Quando terminei, me levantei e fui para meu quarto arrumar minhas coisas. Antes, ouvi minha mãe dizer ao meu tio:
           – Perdoe-me, meu irmão, pela inconveniência...
           – Tudo bem, Maria. – disse ele. – Mas vocês têm que impor limites a esse menino! Ele é muito desaforado!
           Coloquei mina mala em ordem e a levei para a entrada da casa. Meu pai passou por mim, carregando as malas dele e disse baixinho:
           – Você está encrencado!
           Percebi que realmente estava. Culpei-me interiormente por ter dito aquilo. Porém, ao dizer aquelas palavras, estava tomado pela força ruim que veio. Apenas se tratava da malícia que demonstrava. Todos têm um lado mal, o que fiz foi mostrá-lo.
           Subimos na carruagem, nos despedimos de tio Dimas, que aliviou-se com a minha partida, e pegamos a estrada rumo à Ibaíba.
           Chegamos aqui à noite, pouco tempo atrás. Os escravos pegaram nossas bagagens e entraram na frente. Quando chegamos à sala, meu pai me puxou alucinado, parecia até outra pessoa. Apertando meu colarinho, gritou:
           – Agora você vai aprender a respeitar os mais velhos! Seu moleque!
           Ele levantou a mão para me bater, mas minha mãe o impediu. Ela me tirou dos braços dele e disse:
           – Pare com isso, Antônio!
           Meu pai, não entendendo a reação de mamãe, disse:
           – Esse menino tem que aprender a se comportar, Maria!
           – Não é batendo que você vai ensiná-lo!
           – Você viu o que ele disse para seu irmão, não viu? Ainda quer deixá-lo impune?
           – Isso não é motivo para batê-lo.
           – E o seu sumiço que ele deu na celebração? Ainda quer deixá-lo impune?
           – Ele é apenas um garoto. Aliás, São Paulo é uma cidade grande, até eu me perderia lá!
           Papai ia responder, mas percebeu que não iria adiantar. Apenas virou-se e subiu as escadas, resmungando:
           – É por isso que ele é desse jeito. Não vou mais me intrometer mais...
           Após meu pai retirar-se, minha mãe me levou ao sofá e lá disse:
           – Você sabe que o que fez foi muito grave, não sabe?
           – Apenas perguntei algumas coisas, mamãe. – respondi.
           – Certas coisas não se perguntam a ninguém, filho. Muito menos para um familiar.
           – Me perdoe, mamãe.
           – Tudo bem, eu te perdoo. Mas prometa que nunca mais fará isso?
           – Prometo.
           Ela sorriu e me mostrou tranquilidade em seu rosto sereno.
           – Já volto, fique aqui. – me disse, levantando-se e indo à biblioteca, de onde voltou com um caderno nas mãos.
           – Pegue, é um caderno. Dele você fará um diário, onde deve escrever tudo o que fizer, seja bom ou seja mau. Você verá tudo o que fez de mau e tentará mudar. Mas terá que escrever todos os dias!
           Ela me deu o caderno e a agradeci. Dei-lhe um beijo e vim para o meu quarto, onde estou agora.
           Talvez, escrever esse relato tenha me ajudado. Não descobri como, mas sei que ajudou. Esse diário, à partir de hoje, será meu melhor amigo, meu confidente.

Joaquim Miguel Abreu Gonçalves Batista da Fonseca


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