quarta-feira, 16 de maio de 2012

O Último Conde - Parte II





Eis-me aqui novamente, no primeiro compromisso que cumpro e a minha primeira responsabilidade. Sem muitas delongas, irei contar a maravilhosa boa nova que recebi.
Hoje de manhã, enquanto nos servíamos do café, meu pai me dirigiu a palavra:
– Filho, tenho uma notícia para lhe dar.
– Diga meu pai. – disse-lhe.
– Mesmo que não mereça a regalia, vou suspender suas aulas com seu professor Octávio.
Um sentimento perfeito percorreu por entre minhas entranhas. Senti vontade de gritar histericamente, mas me contive e perguntei:
– Qual o motivo da decisão, papai?
– Após ouvir você dizer aquelas barbaridades, percebi que já é maturo o suficiente e que não precisará ser ensinado.
Minha mãe ouviu aquilo indignada, afinal, sou muito novo para que suspendesse minhas aulas.
– Como assim, Antônio? – disse ela. – Você toma uma decisão assim sem me consultar antes?
– É a minha decisão final. – rogou.
– Se é esse o seu desejo, cumprirei com muita satisfação. – proferi.
Passado um tempo, fui ao jardim e comemorei. Não o tanto que queria, pois se meu pai visse que estava contente, decerto voltaria atrás. Parece-me que ele gosta de me ver triste. Talvez seja porque o que é bom pra ele seja péssimo pra mim.
Quis contar a novidade para todos meus amigos, que se resumem a um, Tomas. Pois é, tenho apenas um amigo. Muitos dizem que isso é ruim, mas não concordo. Estou muito bem com somente um. O que considero ruim mesmo é o fato dele morar longe. Por isso que fui até mamãe e lhe disse:
– Posso ir à casa de Tomas?
– Pode sim. – pronunciou. – Vou mandar que Moisés lhe leve para lá. Mas, tome cuidado!
– Irei tomar.
Moisés é o capataz dos escravos que servem ao meu pai. Tenho um pouco de medo dele. Tem uma cicatriz enorme percorrendo a face.
Ele aprontou a carruagem e me levou para casa de meu amigo, que fica a trinta minutos da minha.
Ao chegar lá, encontrei Octávio, meu antigo professor. Não sei se estava sentido em me ver, pois nem me cumprimentou. Ignorei-o e me dirigi a porta. Antes de batê-la, Moisés me chamou e disse com sua voz grossa:
– Ás dezessete horas venho te buscar, como a senhora mandou.
– Tudo bem, pode ir agora.
Ele o fez. Voltei para a entrada e bati na porta. Uma preta me atendeu, já a conhecia e ela também a mim.
– Pois não, seu Joaquim?
– O Tomas está aí? – disse-lhe.
– Está sim, entre que eu irei chamá-lo.
Entrei na casa, que é razoavelmente menor que a minha. O pai de Tomas, senhor Luís Pena, é um dos agricultores mais ricos da região. A sujeita me levou à sala e foi avisar a Tomas que eu estava lá. Pouco tempo depois, ele apareceu, com seus cabelos desgrenhados.
– Joca! Que bom que você veio! – disse-me, dando um abraço.
– Precisei vir. – disse. – Tenho muitas coisas para lhe contar.
– Vamos para meu quarto. Você me conta lá.
Subimos as escadas e fomos para o quarto dele. Sentamos na sua cama.
– Então, o que você tem pra falar? – indagou.
– Você não vai acreditar! Meu pai suspendeu as aulas do professor Octávio!
– Uau! Que máximo! Que sorte...
– Pois é, sorte mesmo. Aquele professor é muito chato.
­– Nem diga. Acabei de ter aulas com ele.
– Eu sei. O vi saindo daqui. Nem falou comigo. Não faço questão nenhuma.
– Por que seu pai decidiu isso?
– Por causa do que aconteceu nesses dias.
– O que aconteceu?
Bateram na porta. Tomas se levantou e foi ver quem era. Era José, o filho que seu pai teve com aquela escrava. Mesmo com o pai branco, nasceu negro. Tem a mesma idade do irmão.
– O que quer? – perguntou Tomas, friamente.
– Vim trazer esses refrescos. – respondeu José, rebaixando-se.
Tomas pegou os refrescos e tentou fechar a porta, mas foi impedido pelo meio-irmão.
– Posso ficar aqui com vocês? – indagou.
– Claro que não! – disse Tom, fechando a porta na cara do coitado.
Ele me entregou a bebida, apanhou a dele e colocou a bandeja com copo que seria de José numa mesinha. Com um só gole, bebeu tudo, nervoso. Olhei para ele, abismado.
– Por que você o trata assim? – perguntei.
– Por que ele é um escravo e é negro. – respondeu. – Minha mãe disse para tratá-lo igual à Clarice – outra irmã dele, de verdade – mas não dá! Eu não aceito ele como um irmão!
Bebi o refresco, dei uma pausa e disse:
– Então, vou continuar a minha estória...
– Claro. Perdoe-me, continue.
Contei para ele o que aconteceu. Não tudo, pois há coisas que não eram provenientes. Contei que vi tio Dimas deitar-se com uma mulher, mas não a minha reação. Enfim, quase tudo.
– Caramba! – disse-me, quando terminei. – Olhe o que você disse para seu próprio tio!
– Não foi proposital... – respondi.
– Sei... Mas já que estamos falando nisso, vou contar o que vi um dia.
– O quê?
– Não faz muito tempo. Era tarde da noite, não estava conseguindo dormir. Fui até a janela pegar um ar fresco e vi algo bizarro. Dois escravos estavam se relacionando entre a mata. Para piorar, os dois eram homens!
– E o que você fez?
– Naquele momento, nada. Porém, no dia seguinte, fui ver quem era aqueles pervertidos e descobri que um deles era casado e tinha filhos. O outro era companheiro de uma das filhas do amante.
– Nossa, que confusão! O sogro com o cunhado!
– Pois é, para você ver como esses escravos são depravados e ordinários.
– Nem todos.
– A grande maioria.
– Você fez alguma coisa depois dessa descoberta?
– Não, não quis me envolver com esse tipo de gente. Deixo para que eles descubram por si próprios, o que duvido, pois eles não pensam.
Fiquei impressionado como desprezo que Tomas sentia pelos escravos. Talvez, o fato de seu pai ter um filho de uma afetou o seu subconsciente. Tenho certeza de que, no futuro, ele será um escravocrata de primeira categoria.
Tentei amenizar o clima mudando de assunto. Conversamos sobre diversas coisas, jantamos e depois retomamos. Quando menos esperava, Moisés havia chegado para me levar para casa.
Antes de partir, disse para Tomas, que se despedia em frente a sua casa:
– Boa sorte amanhã com professor Octávio!
– Nem me lembre! – brincou. – Até a próxima!
Trinta minutos após, estava em casa. Na chegada, mamãe me perguntou o que havia feito.
– Conversamos. – respondi.
– Sobre o quê?
– Muitas coisas. Porém, o que mais me chocou foi a maneira que o Tomas  trará e vê os escravos.
– Devo imaginar, filho... Espero que você não seja assim também.
– De modo algum. Vejo-os com indiferença.
– Nem assim. Eles são seres humanos, como nós.  Só não dou alforria para eles por causa de seu pai.
Ouvi aquilo com muita atenção. Nunca pensara assim. Com certeza, aqueles pobres negros sofrem como todos os humanos.
Enfim, não irei pensar sobre isso, pois é desnecessário. Esse foi o meu dia. Um dia que, apesar de conturbado, foi bom.


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